Jairo contemplou por um
instante o velho pedaço de queijo, solitário na geladeira. Tudo ali parecia
solitário; os móveis, os quadros, e até as paredes manchadas de reboco. Na mesinha ao lado do fogão, um porta-retratos com uma fina camada de poeira revelava o rosto de uma
criança sorridente. Jairo pegou-o, analisou por alguns segundos, e enfim limpou a poeira com o indicador, percebendo
naquele gesto uma forma de carícia que o surpreendeu.
Era
um homem duro, mas dessa vez a vida parecia prestes a derrubá-lo. A barba por fazer, os olhos fundos e o cabelo desgrenhado
denunciavam o descaso com a própria aparência, e dormir várias horas
já não bastava para vencer o cansaço que lhe dominava e acabava com suas
resistências. Jairo não sabia se estava mais cansado das lutas que havia
travado, ou se das que ainda precisaria enfrentar.
Sempre a mesma coisa.
Acordava tomado de um torpor que lhe embriagava os pensamentos, mas, aos poucos,
ia lembrando. A demissão. A dificuldade de encontrar emprego, dia após dia. E
depois, quando nada parecia poder piorar, o golpe mais cruel: a ex-mulher que
lhe impedia de ver o filho. Não havia remédio capaz de curar aquela dor, que
era também um misto de vergonha por não conseguir ser forte.
“É só uma fase”, repetia a si mesmo, sem entusiasmo. Queria lutar, queria
mudar o rumo dos acontecimentos, mas o gosto amargo na boca e o suor adormecido
que haviam se instalado em seu corpo davam-lhe choques de realidade e
desespero. De que lhe adiantaria viver, se o próprio filho não teria orgulho de
sua existência? Mentiria aos amigos, talvez. “Meu pai morreu”, diria o garoto quando começasse a frequentar as aulas.
Sentiu
as palavras ecoando em sua mente, uma voz fina, de criança, repetindo sem parar que não tinha pai. “Meu pai morreu”. Ergueu-se lentamente, tomou o rumo do banheiro, os passos incertos. Logo serei despejado,
lembrou, mas isso pouco lhe importava. “Meu pai morreu”, a voz continuava a falar, cada vez mais
alto. Jairo mirou o próprio reflexo no espelho manchado, e refletiu, amargurado, que decerto o filho decerto tinha razão. Ali, na sua frente, estava a imagem de um homem morto.
Dirigiu-se até a cozinha, agora mais decidido. Abriu a gaveta e
tirou de dentro a faca de cortar carne, que já tinha sido protagonista de tantos
almoços, - mas aqueles eram outros tempos. A lâmina afiada parecia insinuar-se. “E se...?” Contemplou-a longamente, o coração acelerado. Parecia
impossível acreditar que, naquele instante, a vida transcorria normalmente para
as outras pessoas, e que o tambor que se instalara em seu peito não pudesse
abafar todos os sons do mundo.
Agora,
já disposto a desistir de tudo e acabar de vez com tanto sofrimento, todas as coisas pelas
quais ele havia se importado lhe pareciam palidamente desinteressantes. Foi sem falso
sentimentalismo que se despediu de cada cômodo, de cada angústia, de cada
desamparo. Na janela, viu a zombaria de um dia claro sem se importar. Não havia
mais com o que se importar. Apenas o fim lhe esperava, e agora, quanto mais o momento decisivo se
aproximava, mais ele se sentia calmo. Apanhou novamente a faca, deu alguns
passos, e, pela primeira vez em muitos dias, Jairo sorriu. Morrer é bom, refletiu.
Então, quando já erguia o braço, deparou-se com o porta-retratos. O olhar do filho. A voz voltou, lancinante: “meu pai morreu”. E com ela, uma lágrima grossa rolou, perdendo-se no
emaranhado da barba.
Ao longe, gritos de
crianças.
Perto, o tiquetaquear do
relógio e as batidas de um coração.
Tudo
ou nada,
pensou Jairo, desesperado.
Instantes depois de fazer
sua escolha, a faca de tantos almoços de domingo caiu ao chão.