Morri ontem, ao fechar os olhos antes de dormir. Morri hoje, logo
depois de depositar a xícara borrada de café em cima da pia. Provavelmente,
terei morrido outra vez, após terminar de escrever este texto que você está
lendo. Morremos várias vezes todos os dias, mesmo sem flores, sem choro e sem
cochichos nos cantos de uma sala fúnebre.
Procuro em vão recuperar a criança que um dia fui, mas até
mesmo minhas recordações são traiçoeiras. Ao olhar para trás, o faço com os
pensamentos de hoje. Não posso saber o que eu pensava, o que eu temia, quais
eram minhas ilusões e devaneios. Lembranças difusas se misturam com lacunas que
a minha imaginação procura completar, e que muito devem estar distantes da
realidade.
Resigno-me a aceitar que aquele menino magricelo ainda possa
existir, quem sabe em algum lugar do tempo, jogando bola na rua até o céu
escurecer.
O tempo é intransigente. Mata aos poucos. Nessa reciclagem diária,
nos afastamos lentamente do que éramos. Quando nos damos conta de nossas muitas
mortes? Quando, enfim, deixamos de reconhecer como parte nossa o passado que um
dia habitamos? Para onde foi aquele desejo? Para onde foi aquela leveza? Onde
andarão os planos apaixonados daqueles fins de tarde?
O que mudaria se soubéssemos a data de nossa morte?
O que mudaria se nos déssemos conta de que já estamos
morrendo?
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