"Como é que o Papai Noel não esquece de ninguém? Seja rico ou seja pobre, o velhinho sempre vem...".
Maldita música de natal.
E o pior é que ela sempre volta. Todo ano, a mesma cantiga. Até gosto da parte do "sapatinho na janela do quintal", porque evoca uma certa pureza, uma capacidade que apenas as crianças têm de acreditar que o mundo pode ser um lugar mágico, em que um velhinho generoso chega lá do outro lado do mundo, com um presente nas mãos e um largo sorriso no rosto.
Chego a entrar no clima. Imagino aquela cena clássica, o trenó sendo puxado por renas voadoras, a lua cheia ao fundo. Tudo muito bonito. Então, quando chega o trecho que fala do rico e do pobre, e a magia se acaba. O encantamento, invariavelmente, se transforma em desalento.
Porque desconfio que há sim crianças esquecidas pelo senhor Noel. Desconfio que, ao contrário do que prega a cantiga, o natal não seja exatamente o mesmo para meninos ricos e pobres.
Aliás, desconfio que todos saibam disso. Por que, então, tentamos nos convencer do contrário?
Seria uma tentativa de negar o problema para nos sentirmos menos culpados? Afinal, como apontar responsabilidades para algo que sequer existe? Sim, só pode ser isso. Fica mais confortável pensar que o "Papai Noel não esquece de ninguém". Mas a verdade é que a música está lá, mais forte a cada ano, para me lembrar, sempre que é entoada, que não, as coisas não são bem assim.
Maldita música de natal.
segunda-feira, 22 de dezembro de 2014
quarta-feira, 17 de dezembro de 2014
Quanto tempo dura uma verdade
Pense
nas nuvens. O dia está claro e sedutor como a pele da Scarlett Johansson, os
pássaros cantam alegremente, o sol começa a trazer aquele calorzinho chato.
Então, elas surgem. Vindas não se sabe bem de onde, as nuvens começam a se
aglomerar, o dia vai escurecendo; e, de repente, está chovendo.
-
Que tempo louco! - exclamam as pessoas, se esgueirando debaixo das marquises.
A
vida é assim.
Vejam
ainda as ações da Petrobrás. Até dias atrás, um negócio rentável. Agora, os
acionistas veem seus papéis valerem cada dia menos, e, ao que tudo indica, as
perspectivas para 2015 não são nem um pouco animadoras.
O
que isso significa?
Que
as verdades absolutas, na verdade, não são assim tão absolutas. O tempo pode
mudar, as ações podem despencar, o namoro sólido pode esfriar, a esposa fiel
pode ter uma recaída com o vizinho do 812. Vivemos em um mundo imprevisível,
onde muitas vezes prevalece o imponderável, e as decisões são tomadas quase
sempre através da emoção.
Fico
pensando que é isso o que nos aflige em nossas efêmeras existências. Essa
imprevisibilidade. Afinal, não podemos nos precaver dos infortúnios. Talvez
sejamos assaltados na próxima esquina; talvez não. Raramente é possível ter
certeza de algo. O que podemos ter são palpites, que nada mais são do que
vontades ou temores disfarçados de pressentimento.
Digo tudo isso porque, em
duas semanas, um novo ano vai começar. O que ele nos trará? Não podemos prever.
Apenas sonhar. Tão aflitivo, e ao mesmo tempo tão fascinante é viver neste jogo
louco em que tudo pode acontecer!
terça-feira, 16 de dezembro de 2014
Sete livros para as férias
Quando você começa a
fazer uma lista de livros, uma história puxa a outra. Limitar a apenas sete foi
uma grande dificuldade, mas depois de inúmeras ponderações, consegui! Eis a
lista para este verão 2014/15:
O CONTINENTE
Este é o primeiro
livro da trilogia O Tempo e o Vento, de Erico Veríssimo. Já li todos os livros
incontáveis vezes, e a história dos Terra-Cambará sempre me prende de uma forma
diferente. Aliás, é como se a nossa própria história estivesse naquelas páginas.
Principalmente para os gaúchos, não se pode passar por este vale de lágrimas
sem ler O Tempo e o Vento.
EU SOU O MENSAGEIRO
Do mesmo autor de A
Menina Que Roubava Livros. O enredo pode ficar um pouco previsível durante o
desenrolar da história, mas acho fascinante a forma com que o autoconhecimento
surge como o caminho para solucionar os problemas do jovem taxista Ed e de seus
melhores amigos.
DOIS IRMÃOS
Eu possivelmente
nunca leria nenhum livro do Milton Hatoum, mas esse foi uma indicação da
professora Juracy Saraiva, e um dos que mais gostei de ler. Na trama, os gêmeos
Yaqub e Omar protagonizam um enredo cheio de ciúmes, intrigas, morte e até
mesmo um tema tabu para a literatura brasileira: o incesto. Vale a pena se
perder por essas páginas.
CEM ANOS DE SOLIDÃO
Neste ano li Cem Anos
de Solidão, por coincidência na mesma época em que morreu seu autor, Gabriel
García Marquez. Achei a história um
pouco confusa da primeira vez, principalmente por causa dos nomes das
personagens, que se repetem bastante. Porém, como um pouco de teimosia não faz
mal a ninguém, reli o livro. A conclusão? O realismo mágico de García é
incomparável.
QUINTANARES
O gênio das frases
curtas faria muito sucesso no Twitter. Com toda a aversão de Quintana ao
urbanismo e ao concreto, quem sabe a brisa do litoral seja mesmo o melhor lugar
para se deixar enlevar pela sua poesia.
CARTAS NA RUA
Confesso que nunca
tinha lido Bukowski. O fiz pela primeira vez no verão passado, e mais do que
recomendo a leitura. Com um estilo, digamos...transgressor,
e cheio de palavrões, a história aborda a vida de um carteiro norte-americana,
seus dissabores e anseios.
FELIZ ANO VELHO
Fecho com esse livro por duas razões: primeiro, porque a história de
vida do escritor Marcelo Rubens Paiva, um misto de dor e superação, deve servir
de exemplo para todas as pessoas quando pensarem em desistir. E também porque,
ultimamente, alguns têm defendido a volta do regime militar no nosso país. A
história revela, entre muitas outras coisas, a perda do pai do autor, o
deputado Rubens Paiva, que foi capturado pela ditadura militar.
segunda-feira, 8 de dezembro de 2014
Nova história de amor
Flávio
estava perdidamente apaixonado pela noiva Bianca, quando soube de uma vidente
que se mudara para a vizinhança. Ela era capaz não só de prever o futuro,
contaram-lhe, mas também de mostrar em imagens o que aconteceria nos anos
vindouros.
Exultante,
Flávio procurou a mulher e pagou-lhe os valores absurdos da “consulta”. Queria
antever os momentos de felicidade que certamente viriam ao lado da futura
esposa. Posicionaram-se ambos diante da bola de cristal, e então, imagens
difusas começaram a ganhar forma e nitidez.
No
primeiro momento, riu da figura que aparecia. Era um homem com cabelos escassos
e quilos de sobra; a barriga saliente fazendo com que a camiseta que usava
parecesse pequena demais. Ridiculamente procurava algo, tateando sem sucesso
entre os móveis de uma casa qualquer.
De
repente, Flávio reconheceu-se naquele homem mais velho, e seu sorriso
desapareceu. Viu, horrorizado, através da bola de cristal, a sogra entrar na
sala.
Não,
espere! Aquela era a sua noiva!
Bianca!
Meu Deus!
-
Perdeu os óculos de novo, infeliz? – vociferava sua amada Bianca, na versão
mais velha - Vem comer! Hoje não fiz janta, mas tem um pouco de arroz integral.
Flávio
saiu correndo da casa da vidente. Não queria ver mais nada.
Dias
depois, um amigo o encontrou no bar:
-
Ué? Tu não ia casar? – perguntou.
-
Preferi começar a beber. – respondeu Flávio
-Mas
por quê?
Flávio
suspirou antes de responder:
-
Cara, a minha sogra eu até aguento. Mas...arroz integral?! Nem a pau!
E
sorveu um largo gole, sorrindo de alívio.
quarta-feira, 3 de dezembro de 2014
O valor de um sanduíche de presunto
A morte do comediante Roberto Bolanõs nos pegou. Nos
entristeceu coletivamente como poucas vezes eu tinha visto. Pude notar também
que o que acometeu a todos, ou a quase todos, foi uma forma diferente de tristeza. Uma tristeza recheada de boas
recordações, uma tristeza nostálgica até, com o gosto dos bons tempos de
infância.
Principalmente por causa do seriado Chaves.
Isso me deixou pensativo: afinal, por que um seriado tão antigo, com episódios já exaustivamente repetidos, ainda é capaz de nos encantar tanto? Desconfio que sei a resposta. Chaves é um seriado com alma, com sentimento. Os personagens que nos fazem rir parecem quase de carne e osso, salvo, é claro, por causa de alguns exageros que dão graça à vila.
A miséria do pobre Chavo não é, em nenhum momento, acompanhada por pobreza de espírito. Ao contrário. Entre inúmeras trapalhadas, o menino do barril nos mostra sempre que, se por um lado lhe faltam melhores condições de vida; por outro, lhe sobram valores como amizade, pureza e companheirismo.
Uma das falas que mais me marcou está no episódio O Desjejum de Chaves. Ei-la:
Seu Madruga: Ora, o que é isso, Chaves, tá morrendo de fome? Será que não pode aguentar nem mais um minutinho?
Chaves: É que faz anos que eu tô aguentando...
Incrível como a felicidade pode custar tão pouco. Pode custar apenas um sanduíche de presunto. Fica a sensação de que nós - que temos a disposição tantos sanduíches quanto quisermos -, nós temos muito a aprender com o menino do barril.
Principalmente por causa do seriado Chaves.
Isso me deixou pensativo: afinal, por que um seriado tão antigo, com episódios já exaustivamente repetidos, ainda é capaz de nos encantar tanto? Desconfio que sei a resposta. Chaves é um seriado com alma, com sentimento. Os personagens que nos fazem rir parecem quase de carne e osso, salvo, é claro, por causa de alguns exageros que dão graça à vila.
A miséria do pobre Chavo não é, em nenhum momento, acompanhada por pobreza de espírito. Ao contrário. Entre inúmeras trapalhadas, o menino do barril nos mostra sempre que, se por um lado lhe faltam melhores condições de vida; por outro, lhe sobram valores como amizade, pureza e companheirismo.
Uma das falas que mais me marcou está no episódio O Desjejum de Chaves. Ei-la:
Seu Madruga: Ora, o que é isso, Chaves, tá morrendo de fome? Será que não pode aguentar nem mais um minutinho?
Chaves: É que faz anos que eu tô aguentando...
Incrível como a felicidade pode custar tão pouco. Pode custar apenas um sanduíche de presunto. Fica a sensação de que nós - que temos a disposição tantos sanduíches quanto quisermos -, nós temos muito a aprender com o menino do barril.
segunda-feira, 17 de novembro de 2014
O drama de Marcelo
Os colegas de trabalho foram
os primeiros a perceber. Marcelo não era mais o mesmo. Passava horas calado, não
ria das piadas na rodinha do café, e nem do mau humor do chefe ele reclamava
mais.
- Deve ter levado um chifre –
opinou um.
- Ele está com depressão –
sentenciou outro.
Poucos dias depois, a verdade
apareceu:
- Meu celular pifou. Mandei
para a garantia - revelou, desesperado,
a um amigo, - Cara, eu não aguento mais viver sem twitter, facebook, whatsapp,
snap, tinder...
A lista era interminável.
Com o passar dos dias, Marcelo
só piorava. Além de se isolar ao máximo, fumava um cigarro a cada quinze
minutos, e exibia olheiras cada vez mais profundas.
Na segunda-feira, ele não
apareceu na empresa. Nem na terça. Ao meio-dia, os amigos chegaram à conclusão
de que algo grave poderia ter acontecido. Combinaram de visitar o colega no
final do expediente.
Foram até seu apartamento,
preocupados, e lá encontraram um cenário desolador. Roupas sujas por todos os
lados dividiam espaço com tocos de cigarro e restos de comida. Com a barba por
fazer, Marcelo os atendeu só de cueca e meias, os cabelos desgrenhados.
- Santo Deus, mas o que
aconteceu contigo!? –perguntou um dos colegas.
- Teu celular voltou! – disse
outro, apontando para o objeto em cima da mesinha de centro.
- Eu sei, eu sei... – respondeu, desanimado.
- Mas...e então?
- Não consigo ver tudo! –
grunhiu Marcelo.
Então, os amigos
compreenderam. Marcelo não conseguia dar conta de ver todas as atualizações no
Whatsapp. Eram muitos grupos: amigos, colegas de trabalho, o pessoal da
faculdade, a galera do futebol na quinta à noite. Todos tinham muito a
compartilhar: textos, frases, perguntas jamais respondidas, imagens engraçadas,
vídeos curtos, pornografia barata.
Os amigos se entreolham em
silêncio. Apreensão geral.
E agora, o que fazer?
Um bipe anuncia a chegada de
uma nova mensagem no aparelho.
Marcelo deixa o peso do
corpo cair sobre o sofá, desalentado.
quarta-feira, 5 de novembro de 2014
O dono da bola
Lembro quando, certo Natal,
meu vizinho chegou exultante de alegria, mostrando a sua bola de futebol
novinha, toda branca, com o símbolo da Adidas em azul forte.
Foi um dia alegre, afinal
precisávamos estreia-la o quanto antes. Mais do rapidamente chamamos dois ou
três amigos próximos, montamos as duplas, e fomos jogar na rua. Eu era um pouco
mais velho, então não tinha dificuldade em executar meus dribles. Aliás, me sentia
quase um Messi da rua Oscar Schaeffer.
Então, aconteceu. Um carro vermelho
veio na nossa direção; e a disputa parou, que era o que acontecia quando carros
de qualquer cor passavam bem no meio da nossa “arena de jogo”. Mãos na cintura,
ofegantes e suados, esperamos o auto passar. Depois, quando a partida foi
retomada, me senti inspirado: apliquei uma caneta no meu vizinho dono-da-bola, e
desferi um chute certeiro na direção do “gol”. Para finalizar, saí comemorando
em altos brados: "gol do Brasil-sil-sil!"
O meu vizinho ficou vermelho
de raiva, e foi para cima de mim. Por um momento, juro que achei que ele ia me
bater ou dizer alguns palavrões, mas ele simplesmente agachou-se, recolheu a
bola, colocou-a debaixo do braço, e rumou solenemente para sua casa.
Ficamos lá, cabisbaixos, sem
poder prosseguir o jogo.
Tenho lembrado do gesto desse
meu vizinho quando leio as notícias sobre os brasileiros que defendem uma
intervenção militar, já que a candidata que venceu as eleições presidenciais
não era a sua preferida. Porque assim como em um jogo de futebol na rua, na
democracia também é impossível que todos tenham a sua vontade atendida.
É preciso que existam
perdedores e vencedores, mas que, depois do jogo, todos compreendam que as
regras são essas, e que amanhã tem mais bola para rolar. Em uma democracia
consolidada, uma oposição vigilante é tão importante quanto um governo
eficiente. Lamento informar aos “intervencionistas”, mas não adianta querer
resolver tudo colocando a bola debaixo do braço.
segunda-feira, 27 de outubro de 2014
A culpa é toda deles
A
culpa é toda deles. A culpa é dos contos de fadas. Eles que povoaram nossas infâncias e nos fizeram acreditar que a vida é assim: mocinhos de um
lado, vilões de outro. Por isso, sempre temos de escolher um lado, que –
obviamente -, será indiscutivelmente o melhor.
Os
outros, os que defendem outras ideias, outro time de futebol, outra religião,
ou ainda outro partido político; eles é que estão errados, talvez por má fé ou
pura ignorância. Vai saber.
E
assim, dividimo-nos.
E
nos dividindo, nos enfraquecemos.
O
que os resultados de ontem deixam evidente é que o Brasil não vai tão bem como a
propaganda do PT mostra. E nem tão mal quanto pregam os opositores mais ferrenhos.
Feita essa reflexão, a missão que nos é dada é que aecistas e dilmistas se reconciliem pelo
bem do país.
Aliás...Os
contos de fada não nos ensinaram que a união faz a força?
A
verdade, lamento informar, é que não existe um herói nacional capaz de libertar o
Brasil das suas mazelas. Peguemos a corrupção, por exemplo. Há algum setor da
sociedade em que a corrupção não esteja presente, em suas variadas formas?
A
grande mudança que o Brasil precisa não é a reforma política, mas sim o
amadurecimento de seu povo. Aí sim; ele, o povo, será capaz de construir uma
nação mais justa e digna para os filhos deste chão.
segunda-feira, 13 de outubro de 2014
Porta-retratos
Jairo contemplou por um
instante o velho pedaço de queijo, solitário na geladeira. Tudo ali parecia
solitário; os móveis, os quadros, e até as paredes manchadas de reboco. Na mesinha ao lado do fogão, um porta-retratos com uma fina camada de poeira revelava o rosto de uma
criança sorridente. Jairo pegou-o, analisou por alguns segundos, e enfim limpou a poeira com o indicador, percebendo
naquele gesto uma forma de carícia que o surpreendeu.
Era
um homem duro, mas dessa vez a vida parecia prestes a derrubá-lo. A barba por fazer, os olhos fundos e o cabelo desgrenhado
denunciavam o descaso com a própria aparência, e dormir várias horas
já não bastava para vencer o cansaço que lhe dominava e acabava com suas
resistências. Jairo não sabia se estava mais cansado das lutas que havia
travado, ou se das que ainda precisaria enfrentar.
Sempre a mesma coisa.
Acordava tomado de um torpor que lhe embriagava os pensamentos, mas, aos poucos,
ia lembrando. A demissão. A dificuldade de encontrar emprego, dia após dia. E
depois, quando nada parecia poder piorar, o golpe mais cruel: a ex-mulher que
lhe impedia de ver o filho. Não havia remédio capaz de curar aquela dor, que
era também um misto de vergonha por não conseguir ser forte.
“É só uma fase”, repetia a si mesmo, sem entusiasmo. Queria lutar, queria
mudar o rumo dos acontecimentos, mas o gosto amargo na boca e o suor adormecido
que haviam se instalado em seu corpo davam-lhe choques de realidade e
desespero. De que lhe adiantaria viver, se o próprio filho não teria orgulho de
sua existência? Mentiria aos amigos, talvez. “Meu pai morreu”, diria o garoto quando começasse a frequentar as aulas.
Sentiu
as palavras ecoando em sua mente, uma voz fina, de criança, repetindo sem parar que não tinha pai. “Meu pai morreu”. Ergueu-se lentamente, tomou o rumo do banheiro, os passos incertos. Logo serei despejado,
lembrou, mas isso pouco lhe importava. “Meu pai morreu”, a voz continuava a falar, cada vez mais
alto. Jairo mirou o próprio reflexo no espelho manchado, e refletiu, amargurado, que decerto o filho decerto tinha razão. Ali, na sua frente, estava a imagem de um homem morto.
Dirigiu-se até a cozinha, agora mais decidido. Abriu a gaveta e
tirou de dentro a faca de cortar carne, que já tinha sido protagonista de tantos
almoços, - mas aqueles eram outros tempos. A lâmina afiada parecia insinuar-se. “E se...?” Contemplou-a longamente, o coração acelerado. Parecia
impossível acreditar que, naquele instante, a vida transcorria normalmente para
as outras pessoas, e que o tambor que se instalara em seu peito não pudesse
abafar todos os sons do mundo.
Agora,
já disposto a desistir de tudo e acabar de vez com tanto sofrimento, todas as coisas pelas
quais ele havia se importado lhe pareciam palidamente desinteressantes. Foi sem falso
sentimentalismo que se despediu de cada cômodo, de cada angústia, de cada
desamparo. Na janela, viu a zombaria de um dia claro sem se importar. Não havia
mais com o que se importar. Apenas o fim lhe esperava, e agora, quanto mais o momento decisivo se
aproximava, mais ele se sentia calmo. Apanhou novamente a faca, deu alguns
passos, e, pela primeira vez em muitos dias, Jairo sorriu. Morrer é bom, refletiu.
Então, quando já erguia o braço, deparou-se com o porta-retratos. O olhar do filho. A voz voltou, lancinante: “meu pai morreu”. E com ela, uma lágrima grossa rolou, perdendo-se no
emaranhado da barba.
Ao longe, gritos de
crianças.
Perto, o tiquetaquear do
relógio e as batidas de um coração.
Tudo
ou nada,
pensou Jairo, desesperado.
Instantes depois de fazer
sua escolha, a faca de tantos almoços de domingo caiu ao chão.
quinta-feira, 2 de outubro de 2014
Por um voto valorizado
Se
por um lado é surpreendente o alto número de eleitores que dizem ainda estar
indecisos sobre em quem votar para os cargos de deputado estadual e federal -
apontado nos últimos dias pelo Instituto Datafolha -; por outro, podemos
concluir que o índice apenas confirma uma triste realidade que tem se repetido
em sucessivas eleições: o brasileiro vota mal. Essa apatia política ocorre pelo
simples fato de que o eleitor dá pouca importância ao próprio voto, deixando
para fazer suas escolhas na última hora, com pouca análise e um mínimo de ponderação.
Esse
mesmo levantamento também nos leva à inexorável previsão de que a maior parcela
da população, dentro de poucos meses, sequer vai lembrar em quem votou. A ideia
de vitimização da sociedade, propagada pela mídia e pelo senso comum com a
velha frase que afirma que “nenhum político presta”, serve apenas para diminuir
o trabalho dos bons, os igualando aos maus; e ainda nos transmitir a falsa
sensação de que o protagonismo eleitoral está distanciado da população. Na
verdade, somos diretamente responsáveis por aqueles que elegemos, e temos mais
uma função que é essencial para o pleno exercício da democracia: a
fiscalização.
É
comum que muitas pessoas tenham a impressão de que a participação política ocorre
apenas na hora do voto, a cada dois anos. Porém, precisamos com urgência da
consciência coletiva de que este é um processo contínuo, que envolve também
acompanharmos o trabalho daqueles que foram eleitos, cobrando empenho na defesa
das demandas da sociedade, e o cumprimento da chuva de promessas que costuma
permear as campanhas eleitorais. Nessa lista de atitudes necessárias, votar é
apenas a ponta do iceberg de um processo que, em tese, deveria contar com a
participação ativa de toda a sociedade.
O
eleitor assume o protagonismo que lhe cabe quando compara os projetos e escolhe
candidatos que priorizam a apresentação de soluções concretas para os seus
problemas, deixando de lado aqueles que optam pela via da difamação e da ofensa
aos adversários, esquecendo de apresentar suas propostas. Compreender que cada
voto é importante, e que cada cidadão é uma peça fundamental na engrenagem
política que rege nosso país, é o único caminho para a valorização do voto e,
mais do que isso, para a nossa valorização como autores de nossa própria
história, e não meros espectadores.
(Publicado no Jornal Integração, 02/10/2014)
sexta-feira, 26 de setembro de 2014
O que eu quero ensinar
Fiz uma
lista de dez coisas que não posso deixar de transmitir ao meu filho, quando o
tiver. Tenho a impressão que terei de aumentá-la, mas por enquanto ficam essas
dez. Ei-las:
1) Você
pode ser gremista ou colorado, de Direita ou de Esquerda, crente ou ateu. Mas
nunca deixe que nenhuma dessas escolhas te torne um chato.
2) Cuidado
com mulheres que calçam 35! Cuidad... Droga, o pé já o enterneceu.
3) Não
perca o sono com quem te ofende. Como diria Nelson Rodrigues, "de gente
burra só quero vaias".
4) Essa
eu aprendi com meu avô, mas pretendo passar adiante: de homens retos, se espera
retidão. Sempre.
5) homem
de verdade tem de ser leal. Inclusive com os inimigos.
6) O
ódio, a mágoa ou o ressentimento, esses são sentimentos que se voltam contra
quem os nutre. Gaste energia com as coisas boas.
7)) Quando
ela tentar te impor limites, ela estará na verdade te testando (mesmo que de
forma inconsciente). Por isso, nunca ceda. Pode curtir as fotos de quem você
quiser, e então ela respirará aliviada: “ufa! Ele não é um frouxo”.
8)
Existem pessoas que estão sempre filosofando, e levam tudo a sério. Mantenha
distância desses chatos.
9) Não
confie em uísque barato. Principalmente se for do bar do Valdir.
10) Comer
e dormir são duas palavras que englobam as três melhores coisas da vida. Mas
não esquece da camisinha!
quarta-feira, 10 de setembro de 2014
Os cafajestes se dão bem
Conversavam, ontem, duas meninas que trabalham
no Piccadilly, quando passei rapidamente por elas, na calçada. Ouvi apenas uma
frase entrecortada:
- Eu
sei, eu sei. Mas eu gosto de cafajeste...
Quase estaquei no meio do caminho, para cumprimentar
a autora da frase. Afinal, um autoconhecimento assim, tão profundo, não é uma virtude
que se perceba o tempo todo. Sei que ela está coberta de razão. Descobri isso
ao longo do tempo: os bons moços não têm muita chance. As mulheres reclamam,
choram e tecem comentários espinhosos no Secret,
mas não adianta, elas sempre se rendem aos cafajestes.
Porém, preciso fazer justiça: o cafajeste não
é um vilão. Antes disso, é uma vítima, alguém que sofre dos males da eterna
insatisfação. Ele precisa sempre de uma nova conquista, um novo desafio; como
aquele herói solitário que, concluída a missão, abandona a pacata cidade ao
cair da tarde, em busca de outra aventura.
Me compadeço dos cafajestes porque mulheres
os julgam de forma implacável, ainda mais que agora está na moda julgar as
ações de todos o tempo o tempo.
O lado bom é que o cafajeste de verdade não
se importa.
Ele sabe que será o preferido na festa de
final de ano da firma. Ele sempre se dá bem.
terça-feira, 2 de setembro de 2014
Carrinho de controle remoto
Tenho
uma frustração de infância, e talvez ela explique todos os meus dilemas atuais,
mesmo que eu não saiba exatamente quais são eles. Mas a verdade é que eu queria
muito ter algo que jamais pude ter.
Era
um carrinho de controle remoto, dos grandões, vermelho e com os detalhes em
preto. Lindo e imponente, ele aparecia em uma propaganda de TV serpenteando por
pântanos e ambientes perigosos. Cara, aquele era um carrinho resistente.
E
me fascinava.
Era
como uma Ísis Valverde: depois de te chamar atenção uma vez, você não consegue
mais esquecer. E eu não esquecia. Era insistente, fazia birra, usava de todas
as artimanhas que me ocorriam, mas não ganhava. Hoje, imagino que ele deveria
ser realmente caro, porque tive vários outros brinquedos, mas esse foi sempre
negado.
Na
minha turma ninguém tinha, porém TODOS queriam ter aquele carrinho. Com o
tempo, fui entendendo que é mais ou menos assim: queremos o que todos querem. E
quando algo é muito elogiado, passamos a acreditar nisso, passamos a enxergar
qualidades naquele produto que antes não perceberíamos, e por isso, pelo lado
emocional, décimos que queremos.
Não
é a razão que manda, portanto. É a emoção. O que não significa que uma pode completamente
dissociada da outra. Essa lógica vale também para o voto. Por que todos estão
dizendo que vão votar na Marina? Simples: Porque todos estão dizendo que vão
votar na Marina. Corro o risco de ser simplista, eu sei, mas que essa lógica
funciona, isso eu posso garantir.
quarta-feira, 27 de agosto de 2014
O poder do riso
Está publicado em Zh.com o
resultado de uma pesquisa, da Universidade de Houston, falando sobre realização
pessoal. Foi assim: cinquenta voluntários, divididos em dois grupos. Um dos grupos
tinha 24 horas para tentar fazer com que as outras pessoas fossem mais felizes.
O outro tinha apenas de fazer alguém sorrir.
O resultado indicou que as
pessoas que tinham de fazer com que outras sorrissem se sentiram mais felizes
no dia seguinte. Tem lógica: a felicidade é fugidia, é abstrata, indefinida. O
riso não. O riso pode até parecer menor, momentâneo; mas é algo concreto, algo
que não depende de interpretações.
Aliás, já digo isso há algum
tempo: são os pequenos instantes os que realmente importam em uma vida. Os gestos
simples. O cochilo matinal, o café fumegante, a imensidão de um dia cinza. E
claro, a palavra. As que dizemos, as que omitimos, as que guardamos e as que deixamos
escapar.
Momentos fugazes em que é
rompida a linha tênue entre dizê-las ou não; para um lado ou para o outro, e então,
tudo muda. Foi algo que aprendi: se puder, aposte nos pequenos instantes; e
esqueça essa história de sonhar tão alto. Os dias de glória retumbante podem até
vir, mas serão poucos. Já as pequenas conquistas; essas são as que realmente podem fazer a diferença.
quarta-feira, 20 de agosto de 2014
As selfies da imbecilidade
A
justiça está barrando o Secret. Para
quem não está familiarizado, é um aplicativo que permite que os usuários
compartilhem "pequenos segredos" de forma anônima. Era pra ser algo
banal, quem sabe até engraçado, algo do tipo "tenho mania de comer miojo cru".
Até
que...bem, até que algumas - ou muitas - pessoas começaram a utilizar a
ferramenta de forma maldosa, para cometer bullying, espalhando mentiras e
comentários maldosos. Não chega a ser surpreendente. Ouvi dizer, certa vez, que
a tecnologia tornou o ser humano um imbecil. Discordo. A tecnologia apenas
propaga com mais intensidade um comportamento que antes estava entranhado em
algum recôndito obscuro, mas que agora é gritado aos quatro ventos através das
postagens.
Mas,
tem mais.
Aconteceu
neste final de semana, no velório de Eduardo Campos. As pessoas foram lá em
grande multidão, muitas consternadas, outras tantas curiosas, até que, de
repente, algumas começaram a tirar selfies com a imagem do caixão ao fundo. Se
eu não visse essas imagens, talvez não acreditasse. Pois então, que fique registrado que
no mês de agosto do ano de 2014 houve seres humanos que tiraram fotos de si
mesmos em um funeral, por mais absurda que a ideia possa parecer.
Isso
é outra coisa que me inquieta há tempos. O que motiva alguém a se gostar tanto?
Afinal, uma pessoa que tira fotos de si mesma o tempo todo é alguém que se
considera muito importante, e que, portanto, está há apenas um passo da
arrogância e da presunção. Ou do desconhecimento. Porque apenas pode ser
presunçoso aquele que desconhece quem realmente é.
Se
soubesse quem é, não seria presunçoso; seria triste.
sexta-feira, 8 de agosto de 2014
Como vencer a tristeza
Para vencer a tristeza, é preciso ficar alegre. Foi o que descobri na semana passada, quando o meu avô morreu. Parece um aprendizado óbvio, mas não é. Porque a maioria das pessoas, quando está triste, costuma fazer coisas que as deixam mais tristes ainda, como ficar remoendo desilusões ou ouvindo canções cheias de melancolia.
No velório, ao lado do caixão, onde também repousava seu velho chapéu de palha; começávamos a lembrar de histórias do meu avô, anedotas antigas ou recentes, e então, de repente...ali estavam sorrisos estampados nos nossos rostos. Tenho certeza de que, se pudesse escolher, meu avô preferiria assim, ele que também vivia sorrindo.
Mas, de todas as lembranças feitas naquelas horas difíceis de despedida, a que mais me comoveu foi a da minha avó. Entre lágrimas, ela me disse baixinho: "Repara quanta gente! Todo mundo gostava dele...Ele nunca brigou com ninguém. Sempre dizia que, se alguém ofendesse, ele virava as costas e iria embora!".
Marejei os olhos. Ali estava, na prática, a recordação de um ensinamento que vale mais do que mil lições com qualquer sábio. É assim que deve ser: de homens retos, você espera retidão.
Fiquei alegre, orgulhoso por ser seu neto. E então, ainda com os olhos molhados, eu sorri.
Sei que ele preferiria assim.
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