segunda-feira, 17 de novembro de 2014

O drama de Marcelo



Os colegas de trabalho foram os primeiros a perceber. Marcelo não era mais o mesmo. Passava horas calado, não ria das piadas na rodinha do café, e nem do mau humor do chefe ele reclamava mais.

- Deve ter levado um chifre – opinou um.
- Ele está com depressão – sentenciou outro.

Poucos dias depois, a verdade apareceu:
- Meu celular pifou. Mandei para a garantia -  revelou, desesperado, a um amigo, - Cara, eu não aguento mais viver sem twitter, facebook, whatsapp, snap, tinder...

A lista era interminável.

Com o passar dos dias, Marcelo só piorava. Além de se isolar ao máximo, fumava um cigarro a cada quinze minutos, e exibia olheiras cada vez mais profundas.

Na segunda-feira, ele não apareceu na empresa. Nem na terça. Ao meio-dia, os amigos chegaram à conclusão de que algo grave poderia ter acontecido. Combinaram de visitar o colega no final do expediente.

Foram até seu apartamento, preocupados, e lá encontraram um cenário desolador. Roupas sujas por todos os lados dividiam espaço com tocos de cigarro e restos de comida. Com a barba por fazer, Marcelo os atendeu só de cueca e meias, os cabelos desgrenhados.

- Santo Deus, mas o que aconteceu contigo!? –perguntou um dos colegas.
- Teu celular voltou! – disse outro, apontando para o objeto em cima da mesinha de centro.
 - Eu sei, eu sei... – respondeu, desanimado.
- Mas...e então?
- Não consigo ver tudo! – grunhiu Marcelo.

Então, os amigos compreenderam. Marcelo não conseguia dar conta de ver todas as atualizações no Whatsapp. Eram muitos grupos: amigos, colegas de trabalho, o pessoal da faculdade, a galera do futebol na quinta à noite. Todos tinham muito a compartilhar: textos, frases, perguntas jamais respondidas, imagens engraçadas, vídeos curtos, pornografia barata.

Os amigos se entreolham em silêncio. Apreensão geral.

E agora, o que fazer?

Um bipe anuncia a chegada de uma nova mensagem no aparelho.

Marcelo deixa o peso do corpo cair sobre o sofá, desalentado.

quarta-feira, 5 de novembro de 2014

O dono da bola

Lembro quando, certo Natal, meu vizinho chegou exultante de alegria, mostrando a sua bola de futebol novinha, toda branca, com o símbolo da Adidas em azul forte.

Foi um dia alegre, afinal precisávamos estreia-la o quanto antes. Mais do rapidamente chamamos dois ou três amigos próximos, montamos as duplas, e fomos jogar na rua. Eu era um pouco mais velho, então não tinha dificuldade em executar meus dribles. Aliás, me sentia quase um Messi da rua Oscar Schaeffer.

Então, aconteceu. Um carro vermelho veio na nossa direção; e a disputa parou, que era o que acontecia quando carros de qualquer cor passavam bem no meio da nossa “arena de jogo”. Mãos na cintura, ofegantes e suados, esperamos o auto passar. Depois, quando a partida foi retomada, me senti inspirado: apliquei uma caneta no meu vizinho dono-da-bola, e desferi um chute certeiro na direção do “gol”. Para finalizar, saí comemorando em altos brados: "gol do Brasil-sil-sil!"

O meu vizinho ficou vermelho de raiva, e foi para cima de mim. Por um momento, juro que achei que ele ia me bater ou dizer alguns palavrões, mas ele simplesmente agachou-se, recolheu a bola, colocou-a debaixo do braço, e rumou solenemente para sua casa.

Ficamos lá, cabisbaixos, sem poder prosseguir o jogo.

Tenho lembrado do gesto desse meu vizinho quando leio as notícias sobre os brasileiros que defendem uma intervenção militar, já que a candidata que venceu as eleições presidenciais não era a sua preferida. Porque assim como em um jogo de futebol na rua, na democracia também é impossível que todos tenham a sua vontade atendida.


É preciso que existam perdedores e vencedores, mas que, depois do jogo, todos compreendam que as regras são essas, e que amanhã tem mais bola para rolar. Em uma democracia consolidada, uma oposição vigilante é tão importante quanto um governo eficiente. Lamento informar aos “intervencionistas”, mas não adianta querer resolver tudo colocando a bola debaixo do braço.