terça-feira, 17 de junho de 2014

O imponderável


O futebol tem a capacidade de mexer com as pessoas. Concluí isso hoje, quando o Nachtigall, que é o meteorologista que fala diariamente na Rádio Amizade, sempre muito sisudo, demorou-se um pouco mais na ligação, antes de eu coloca-lo no ar:

- Ô jovem... - me disse ele – Qual é o teu palpite para o jogo de hoje?

E teríamos debatido por muito tempo sobre as possibilidades de escore entre Brasil e México, se não fosse o tempo tão curto. Quem diria! Nós, que raramente conversamos mais do que o rotineiro, unidos no telefone pela magia do futebol.

Hoje mesmo. Ninguém contava com a astúcia do goleiro mexicano, e aí reside outra faceta que o futebol revela a todo momento, mas que sempre nos surpreende: o imponderável. Está tudo bem desenhado, as chances que cada equipe possui, as variações de jogadas, a forma com que as peças em campo se movimentam, até o grito da torcida é mais ou menos previsível....

Só que não. Porque o futebol não é o esporte do previsível, e sim do imponderável. Um goleiro em um inspirado fim de tarde pode mudar os rumos de uma partida, como mudou; e um jogo aparentemente fácil pode gerar muitas dificuldades, como gerou. E quantas vezes a bola que passa zunindo por entre zagueiros e atacantes, desvia no pé de um defensor, engana o goleiro e morre no fundo das redes!


Ah, o imponderável!  É incrível como o futebol imita a vida.

terça-feira, 10 de junho de 2014

Um domingo decisivo

Luciano passou toda a faculdade sonhando em sair com a Rita, mas a timidez sempre o impedia de ir em frente e fazer o pedido. “É muita areia”, pensava ele, contemplando de longe as curvas sinuosas da morena, os longos cabelos ondulando enquanto ela caminhava.

Até que, certo sábado, bebeu umas cervejas, tomou coragem e aproximou-se, em uma das salas quase vazias da biblioteca “É agora ou nunca”, prometeu a si mesmo, mal sentindo as pernas enquanto andava. Olhou a boca bem desenhada, as feições delicadas do rosto trigueiro, o suave relevo do decote.

Concentra, rapaz!, pensou em pânico, sentindo um filete de suor escorrer pelo canto do rosto, a garganta seca:

- Vamos tomar alguma coisa hoje à noite? – soltou ele, rapidamente.
- Ahn? – fez ela, erguendo os olhos do livro.
- Eu perguntei se você... – repetiu Luciano, dessa vez mais devagar, embora ainda não estivesse calmo – Se você gostaria de...de tomar alguma coisa hoje à noite...já que não tem aula...
- Aaah – fez Rita em um muxoxo – Que pena, mas amanhã eu preciso acordar muito cedo... – ela parecia realmente estar lamentando, pensou Luciano, aliviado.
- Por que não amanhã? – disparou a garota.

Amanhã? Luciano engoliu em seco. Bem no dia do jogo da Seleção! Brasil e Argentina, na final da Copa do Mundo! Em que mundo Rita vivia? Será que ela não se importava com o jogo do século, do milênio talvez?
Não, ela não se importava, e esperava a resposta, seus olhos grandes fitando o pobre Luciano. Foram aqueles olhos que o fizeram se decidir:

- Combinado! – disse ele, finalmente. – Vamos olhar o jogo na minha casa? – convidou, esperançoso de ter achado uma grande solução para o impasse.
- Pode ser... – concordou a Rita, sem se empolgar. E assim, com aquele ar blasé que deixava qualquer homem hipnotizado, voltou a concentrar-se no livro que estava lendo.

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13 de julho de 2014. 

Domingo. 

Na hora marcada, lá estava Rita, como um raio de luz que irrompe pela porta entreaberta. Estonteante, concluiu Luciano, admirando aquele corpo dourado dentro de um vestido justo como as leis divinas, o decote profundo como os ensinamentos de Nietzsche, a vozinha de mel a cumprimentá-lo:

-Oiee..


Foi um jogo difícil aquele. Porque o ataque da Argentina se insinuava a cada minuto, e porque Rita se aninhava cada vez no ombro de Luciano. Ele não era um jovem inexperiente. Sabia que ela estava no papo. Apenas queria deixa-la para depois do jogo, quem sabe comemorar o hexa no tapete da sala...

- Lá vem o Messi! – berrava Galvão – enquanto o baixinho ia serpenteando por entre os gigantes zagueiros brasileiros, chutando do bico da área, a bola zunindo, tirando tinta da trave, silenciando o Maracanã, indo para a linha de fundo – haaaaja coração, amigo! 

Quando o jogo acabou, em zero a zero, Luciano não aguentava mais tanta tensão reunida. A partida ia para os pênaltis. Meu Deus! Rita já não tinha mais paciência com aquilo tudo, e acariciava, provocante, a coxa de Luciano, mordiscava o seu pescoço, enlouquecia o pobre torcedor. 

Tudo tem limite, pensou Luciano, levantando num rompante e desligando a TV. Rasgou a roupa de Rita, amando-a de forma rápida e violenta. E então, Luciano dormiu, exausto por todas aquelas emoções, e sonhou com uma partida interminável, em que ele nunca descobria se o campeão era o Brasil ou a Argentina.


quarta-feira, 4 de junho de 2014

Certa rua sem saída

Vi ontem uma cena que me deixou nostálgico. Foi quando a tarde já estava caindo, cedendo lugar à noite fria, e dois meninos jogavam com uma velha bola, numa rua sem saída. Ali, naquele instante fugaz, nada mais parecia importar: as guerras, as eleições, o aumento da conta de luz. Nem mesmo o frio enregelante de junho era capaz de arrefecer a vontade com que os meninos travavam aquela disputa.

Sei bem o que sentiam aqueles garotos, porque eu também já abri a costura de muitos pares de tênis em jogos de fim de tarde. Já esfolei o joelho, sem dar muita atenção pra isso; e incontáveis vezes voltei para casa, todo sujo e suado, pronto para ouvir o ralhar da minha mãe. Sei bem o que se pensa nestas horas, e sinto saudade de quando eu era imbatível, porque sabia que nada poderia valer mais do que fazer a bola perpassar a linha imaginária da goleira feita no improviso.


Por um instante, quis que fosse essa a imagem que o Brasil vai passar ao mundo durante a Copa que se aproxima. As arenas, os estádios de aço e concreto que foram erguidos de norte a sul, eles são grandiosos e pulsantes; mas em nada se comparam ao grito de gol daqueles meninos correndo; e sequer conseguem chegar perto da beleza que irradia da cena singela que é o futebol na rua, os pés descalços, o sorriso de duas crianças.