segunda-feira, 27 de outubro de 2014

A culpa é toda deles


A culpa é toda deles. A culpa é dos contos de fadas. Eles que povoaram nossas infâncias e nos fizeram acreditar que a vida é assim: mocinhos de um lado, vilões de outro. Por isso, sempre temos de escolher um lado, que – obviamente -, será indiscutivelmente o melhor.

Os outros, os que defendem outras ideias, outro time de futebol, outra religião, ou ainda outro partido político; eles é que estão errados, talvez por má fé ou pura ignorância. Vai saber.

E assim, dividimo-nos.

E nos dividindo, nos enfraquecemos.

O que os resultados de ontem deixam evidente é que o Brasil não vai tão bem como a propaganda do PT mostra. E nem tão mal quanto pregam os opositores mais ferrenhos. Feita essa reflexão, a missão que nos é dada é que aecistas e dilmistas se reconciliem pelo bem do país.

Aliás...Os contos de fada não nos ensinaram que a união faz a força?

A verdade, lamento informar, é que não existe um herói nacional capaz de libertar o Brasil das suas mazelas. Peguemos a corrupção, por exemplo. Há algum setor da sociedade em que a corrupção não esteja presente, em suas variadas formas?


A grande mudança que o Brasil precisa não é a reforma política, mas sim o amadurecimento de seu povo. Aí sim; ele, o povo, será capaz de construir uma nação mais justa e digna para os filhos deste chão. 

segunda-feira, 13 de outubro de 2014

Porta-retratos


Jairo contemplou por um instante o velho pedaço de queijo, solitário na geladeira. Tudo ali parecia solitário; os móveis, os quadros, e até as paredes manchadas de reboco. Na mesinha ao lado do fogão, um porta-retratos com uma fina camada de poeira revelava o rosto de uma criança sorridente. Jairo pegou-o, analisou por alguns segundos, e enfim limpou a poeira com o indicador, percebendo naquele gesto uma forma de carícia que o surpreendeu.  

Era um homem duro, mas dessa vez a vida parecia prestes a derrubá-lo.  A barba por fazer, os olhos fundos e o cabelo desgrenhado denunciavam o descaso com a própria aparência, e dormir várias horas já não bastava para vencer o cansaço que lhe dominava e acabava com suas resistências. Jairo não sabia se estava mais cansado das lutas que havia travado, ou se das que ainda precisaria enfrentar. 

Sempre a mesma coisa. Acordava tomado de um torpor que lhe embriagava os pensamentos, mas, aos poucos, ia lembrando. A demissão. A dificuldade de encontrar emprego, dia após dia. E depois, quando nada parecia poder piorar, o golpe mais cruel: a ex-mulher que lhe impedia de ver o filho. Não havia remédio capaz de curar aquela dor, que era também um misto de vergonha por não conseguir ser forte. 

“É só uma fase”, repetia a si mesmo, sem entusiasmo. Queria lutar, queria mudar o rumo dos acontecimentos, mas o gosto amargo na boca e o suor adormecido que haviam se instalado em seu corpo davam-lhe choques de realidade e desespero. De que lhe adiantaria viver, se o próprio filho não teria orgulho de sua existência? Mentiria aos amigos, talvez. “Meu pai morreu”, diria o garoto quando começasse a frequentar as aulas. 

Sentiu as palavras ecoando em sua mente, uma voz fina, de criança, repetindo sem parar que não tinha pai. “Meu pai morreu”. Ergueu-se lentamente, tomou o rumo do banheiro, os passos incertos. Logo serei despejado, lembrou, mas isso pouco lhe importava. “Meu pai morreu”, a voz continuava a falar, cada vez mais alto. Jairo mirou o próprio reflexo no espelho manchado, e refletiu, amargurado, que decerto o filho decerto tinha razão. Ali, na sua frente, estava a imagem de um homem morto. 

Dirigiu-se até a cozinha, agora mais decidido. Abriu a gaveta e tirou de dentro a faca de cortar carne, que já tinha sido protagonista de tantos almoços, - mas aqueles eram outros tempos.  A lâmina afiada parecia insinuar-se. E se...? Contemplou-a longamente, o coração acelerado. Parecia impossível acreditar que, naquele instante, a vida transcorria normalmente para as outras pessoas, e que o tambor que se instalara em seu peito não pudesse abafar todos os sons do mundo. 

Agora, já disposto a desistir de tudo e acabar de vez com tanto sofrimento, todas as coisas pelas quais ele havia se importado lhe pareciam palidamente desinteressantes. Foi sem falso sentimentalismo que se despediu de cada cômodo, de cada angústia, de cada desamparo. Na janela, viu a zombaria de um dia claro sem se importar. Não havia mais com o que se importar. Apenas o fim lhe esperava, e agora, quanto mais o momento decisivo se aproximava, mais ele se sentia calmo. Apanhou novamente a faca, deu alguns passos, e, pela primeira vez em muitos dias, Jairo sorriu. Morrer é bom, refletiu. 

 Então, quando já erguia o braço, deparou-se com o porta-retratos. O olhar do filho. A voz voltou, lancinante: “meu pai morreu”. E com ela, uma lágrima grossa rolou, perdendo-se no emaranhado da barba.

Ao longe, gritos de crianças.

Perto, o tiquetaquear do relógio e as batidas de um coração.

Tudo ou nada, pensou Jairo, desesperado.

Instantes depois de fazer sua escolha, a faca de tantos almoços de domingo caiu ao chão. 


quinta-feira, 2 de outubro de 2014

Por um voto valorizado

Se por um lado é surpreendente o alto número de eleitores que dizem ainda estar indecisos sobre em quem votar para os cargos de deputado estadual e federal - apontado nos últimos dias pelo Instituto Datafolha -; por outro, podemos concluir que o índice apenas confirma uma triste realidade que tem se repetido em sucessivas eleições: o brasileiro vota mal. Essa apatia política ocorre pelo simples fato de que o eleitor dá pouca importância ao próprio voto, deixando para fazer suas escolhas na última hora, com pouca análise e um mínimo de ponderação.

Esse mesmo levantamento também nos leva à inexorável previsão de que a maior parcela da população, dentro de poucos meses, sequer vai lembrar em quem votou. A ideia de vitimização da sociedade, propagada pela mídia e pelo senso comum com a velha frase que afirma que “nenhum político presta”, serve apenas para diminuir o trabalho dos bons, os igualando aos maus; e ainda nos transmitir a falsa sensação de que o protagonismo eleitoral está distanciado da população. Na verdade, somos diretamente responsáveis por aqueles que elegemos, e temos mais uma função que é essencial para o pleno exercício da democracia: a fiscalização.  

É comum que muitas pessoas tenham a impressão de que a participação política ocorre apenas na hora do voto, a cada dois anos. Porém, precisamos com urgência da consciência coletiva de que este é um processo contínuo, que envolve também acompanharmos o trabalho daqueles que foram eleitos, cobrando empenho na defesa das demandas da sociedade, e o cumprimento da chuva de promessas que costuma permear as campanhas eleitorais. Nessa lista de atitudes necessárias, votar é apenas a ponta do iceberg de um processo que, em tese, deveria contar com a participação ativa de toda a sociedade.

O eleitor assume o protagonismo que lhe cabe quando compara os projetos e escolhe candidatos que priorizam a apresentação de soluções concretas para os seus problemas, deixando de lado aqueles que optam pela via da difamação e da ofensa aos adversários, esquecendo de apresentar suas propostas. Compreender que cada voto é importante, e que cada cidadão é uma peça fundamental na engrenagem política que rege nosso país, é o único caminho para a valorização do voto e, mais do que isso, para a nossa valorização como autores de nossa própria história, e não meros espectadores.

(Publicado no Jornal Integração, 02/10/2014)