segunda-feira, 13 de outubro de 2014

Porta-retratos


Jairo contemplou por um instante o velho pedaço de queijo, solitário na geladeira. Tudo ali parecia solitário; os móveis, os quadros, e até as paredes manchadas de reboco. Na mesinha ao lado do fogão, um porta-retratos com uma fina camada de poeira revelava o rosto de uma criança sorridente. Jairo pegou-o, analisou por alguns segundos, e enfim limpou a poeira com o indicador, percebendo naquele gesto uma forma de carícia que o surpreendeu.  

Era um homem duro, mas dessa vez a vida parecia prestes a derrubá-lo.  A barba por fazer, os olhos fundos e o cabelo desgrenhado denunciavam o descaso com a própria aparência, e dormir várias horas já não bastava para vencer o cansaço que lhe dominava e acabava com suas resistências. Jairo não sabia se estava mais cansado das lutas que havia travado, ou se das que ainda precisaria enfrentar. 

Sempre a mesma coisa. Acordava tomado de um torpor que lhe embriagava os pensamentos, mas, aos poucos, ia lembrando. A demissão. A dificuldade de encontrar emprego, dia após dia. E depois, quando nada parecia poder piorar, o golpe mais cruel: a ex-mulher que lhe impedia de ver o filho. Não havia remédio capaz de curar aquela dor, que era também um misto de vergonha por não conseguir ser forte. 

“É só uma fase”, repetia a si mesmo, sem entusiasmo. Queria lutar, queria mudar o rumo dos acontecimentos, mas o gosto amargo na boca e o suor adormecido que haviam se instalado em seu corpo davam-lhe choques de realidade e desespero. De que lhe adiantaria viver, se o próprio filho não teria orgulho de sua existência? Mentiria aos amigos, talvez. “Meu pai morreu”, diria o garoto quando começasse a frequentar as aulas. 

Sentiu as palavras ecoando em sua mente, uma voz fina, de criança, repetindo sem parar que não tinha pai. “Meu pai morreu”. Ergueu-se lentamente, tomou o rumo do banheiro, os passos incertos. Logo serei despejado, lembrou, mas isso pouco lhe importava. “Meu pai morreu”, a voz continuava a falar, cada vez mais alto. Jairo mirou o próprio reflexo no espelho manchado, e refletiu, amargurado, que decerto o filho decerto tinha razão. Ali, na sua frente, estava a imagem de um homem morto. 

Dirigiu-se até a cozinha, agora mais decidido. Abriu a gaveta e tirou de dentro a faca de cortar carne, que já tinha sido protagonista de tantos almoços, - mas aqueles eram outros tempos.  A lâmina afiada parecia insinuar-se. E se...? Contemplou-a longamente, o coração acelerado. Parecia impossível acreditar que, naquele instante, a vida transcorria normalmente para as outras pessoas, e que o tambor que se instalara em seu peito não pudesse abafar todos os sons do mundo. 

Agora, já disposto a desistir de tudo e acabar de vez com tanto sofrimento, todas as coisas pelas quais ele havia se importado lhe pareciam palidamente desinteressantes. Foi sem falso sentimentalismo que se despediu de cada cômodo, de cada angústia, de cada desamparo. Na janela, viu a zombaria de um dia claro sem se importar. Não havia mais com o que se importar. Apenas o fim lhe esperava, e agora, quanto mais o momento decisivo se aproximava, mais ele se sentia calmo. Apanhou novamente a faca, deu alguns passos, e, pela primeira vez em muitos dias, Jairo sorriu. Morrer é bom, refletiu. 

 Então, quando já erguia o braço, deparou-se com o porta-retratos. O olhar do filho. A voz voltou, lancinante: “meu pai morreu”. E com ela, uma lágrima grossa rolou, perdendo-se no emaranhado da barba.

Ao longe, gritos de crianças.

Perto, o tiquetaquear do relógio e as batidas de um coração.

Tudo ou nada, pensou Jairo, desesperado.

Instantes depois de fazer sua escolha, a faca de tantos almoços de domingo caiu ao chão. 


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