sexta-feira, 25 de outubro de 2013

Certa noite de inverno

Fazia frio, fazia muito frio naquela tarde longínqua em que chegamos à cidade de Esperança. Uma névoa densa e muito pesada tomava conta dos altos morros que protegiam o povoado, tornando o ambiente ainda mais cinzento. Eu estava triste, disso lembro bem. Aliás, vivia triste. Como alguém que ama o que faz pode viver triste? Pois é, eu vivia. Todos os dias, as palavras de meu pai ecoavam na minha cabeça: “Palhaço de circo? Tu és um desgosto, Raphael!”. 

Perdido em devaneios, nem me dei conta quando paramos. Ia começar toda a trabalheira de novo. Era assim toda vez que chegávamos em uma nova cidade, o cansaço da viagem se misturava com a necessidade de deixar tudo pronto. 

A trupe numerosa, mas silenciosa. Era bom aquele trabalho braçal, porque impedia que a mente se ocupasse de coisas ruins. O frio, penetrando o tecido da roupa, trazia uma sensação de desamparo ao entrar em contato com a epiderme. 

Ao cair da noite, era chegada a hora do espetáculo. Todos os sentimentos ruins se dissipavam. Eu queria guardar os sorrisos das crianças, assim aqueles instantes fugídios se tornariam eternos. Eu queria guardar os aplausos, queria guardar aquela paz. Eu queria congelar o que sentia nessas horas, mas era em vão. 

Sei bem o porquê de lembrar dessa noite, de lembrar dessa cidade. Foram tantas! Mas aquele lugarejo traria algo diferente. Na saída da última sessão, as pessoas andavam apressadas, protegendo-se do frio cortante e ansiando pelo calor de suas casas. Tudo isso eu acompanhava, espiando por uma fresta da imensa lona, enquanto lembrava, com leve melancolia, dos tempos em que eu também tinha um lar aconchegante e uma família para me receber quando as noites fossem geladas. 

Já me preparava para voltar ao convívio da trupe, quando aconteceu. Um menino, - de uns oito anos, não mais do que isso -, sendo conduzido pela mão de sua mãe, olhava para trás, relutante em deixar o local. 

  - Ô mãe...- disse ele, com ar decidido, - eu já sei o que eu vou ser quando crescer. 
  - E o que é? - perguntou a mulher, com ar curioso. 
  - Quer ser do circo! – exclamou.  

  Ela parou um instante, parecendo surpresa com aquela decisão repentina. 

  - Quero ser domador de leão – completou o menino, com olhar sonhador. 
  - Ia ficar lindo – disse a mulher, ajeitando uma mecha rebelde do cabelo do garoto.

Eles seguiram, mas era como se aquele diálogo continuasse se repetindo diante de mim; dez, vinte, trinta vezes. Só bem mais tarde é que resolvi entrar, quando a escuridão invadiu de vez a pequena cidade.


Era uma noite em que fazia frio, fazia muito frio.


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